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Crônica Felipe Fleury

Canícula

Fazia um calor carioca, uma canícula, em pleno outubro, na Serra de Petrópolis.

Depois de encerrado o expediente no teletrabalho, abri o noticiário na tela do lap top: queimadas na Amazônia e no Pantanal, o presidente diz que não há corrupção em seu governo e, menos destacada, uma notícia sobre o aumento dos casos de violência doméstica durante o período da pandemia.

Há quinze ou vinte anos era impensável um aparelho de ar condicionado numa casa na Serra. Em maio, as noites já eram bastante frias e, mesmo no verão, dormia-se bem nos dias mais quentes, com o auxílio de um ventilador.

Assim que sobrar um dinheiro, um ar condicionado. Não, dois, um em cada quarto, pelo menos, pensei.

Não corria vento, o suor descia pelo rosto, transbordava pelos poros e ensopava minha camisa. O Sol da tarde, mesmo já se deitando por trás das montanhas, ainda sufocava.

Cliquei na violência doméstica. Li a reportagem até ao fim. O calor do lap top sobre meu colo me fez parar por ali.

Fechei a tampa do computador e retirei-o rapidamente de cima de mim.

O Sol já era quase um rastilho, dava para ir lá fora sem sofrimento. A sorte de morar nas montanhas é que, mesmo nos dias mais quentes, sempre sopra uma brisa agradável antes de anoitecer.

Abri a porta do quarto da Júlia, ela estava deitada na cama, com a cara colada no smartphone. Usava um daqueles fones sem fio. Acho que nem percebeu minha presença. Típico de uma adolescente de 14 anos.

Peguei um livro de poemas, uma garrafa d`água e um charuto. Fui lá para o meu banquinho preferido, que fica numa espécie de pracinha, na área comum do condomínio. Gosto dele, porque fica defronte de várias árvores que, pelas longas barbas, devem ser do tempo do Império.

A brisa veio, como esperado. Um frescor típico da Primavera, agora, sim, a Primavera.

Acendi o charuto, abri o livro, mas aquela notícia ainda estava estampada nas minhas retinas. Junto dela, Júlia ocupou meus pensamentos. “Que ela encontre um homem que a respeite”, disse para mim mesmo, sussurrando.

Voltei ao livro e ao charuto, mas uma vozearia me chamou a atenção para o gazebo, distante uns quinze metros de onde estava, porque dois meninos se engalfinhavam sob os olhares espantados dos colegas, todos muito jovens, aparentando entre 10 e 14 anos de idade.

Em dado momento, um deles interveio para apartar a briga.

– Não se mete, Caio! Ordenou a única menina da turma, e que também parecia a mais velha e líder. E prosseguiu:

– Você não sabe que, em briga de irmãos, a gente não interfere. Deixa eles se resolverem! É como briga de marido e mulher, ninguém mete a colher!

Caio obedeceu. Os sopapos não duraram mais do que um minuto. Logo, todos montaram em suas bicicletas e partiram para outro canto do condomínio.

Fechei o livro e observei os rumos dos últimos fumos, até desaparecerem no lusco-fusco do crepúsculo.

Retornei ao apartamento e, com cuidado, abri uma fresta da porta do quarto da Júlia. Ela ainda estava ali, guardada no seu próprio mundo. Provavelmente nem percebera a minha ausência.

Entrei no banho, a água fria descia forte sobre meu corpo, abafando parcialmente a voz que vinha de fora:

– Pai? Paiê! Tá aí?

Antes de responder, quase instintivamente, sorri.

***

Felipe Fleury

Imagem: “Campo de trigo com ceifeiro e Sol”, de 1889, Van Gogh.

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